sexta-feira, 1 de junho de 2012

ESQUIZOFRENIA


REALIDADES 

"Frederico Britto passou pelo armazém, como faz costumeiramente. “Bom dia, seu Joaquim.” “Bom dia, rapaz. Vai para o trabalho?” “É, vou sim.” Trabalhou até as 17:30 e não conseguiu nada, nem um cliente, nem mesmo apresentar uma casa para alguém. A corretagem de imóveis já não dava mais tanto dinheiro como nos anos setenta. “Velhos tempos”, pensava. Ao chegar em casa, cansado, sentou-se na sala e, dirigindo-se à mãe Rosane, disse: “Tudo bem com a senhora?” “Vai-se indo, meu filho, vai-se indo...” “Qual é o rango de hoje?” “Tem feijão de ontem, mas está bom. Estou esquentando o arroz e fritei dois ovos para você.” Fred levantou-se, sem querer aparentar o desânimo com o terceiro dia consecutivo do ovo, e foi tomar um banho. Retornou lavado, cheiroso e sentou-se à mesa. Comeu sem muito ânimo e retornou à sala para ver televisão. A mãe passou, depois de arrumar a cozinha e disse: “Vou dormir.” “Boa noite mãe!”

 No dia seguinte, acordou cedo para comprar o pão e o jornal, quando, depois de cumprimentar o velho Joaquim, encontrou Martinha, antiga namorada, velho amor que não foi correspondido. “Está melhor, Fred.” “Estou ótimo”, respondeu seco, sem querer alongar a prosa, mas, ao mesmo tempo, interiormente feliz por rever Martinha, tão bonita, doce, inteligente. “E eles? Continua vendo-os?” “Mamãe está bem, apesar da idade; e seu Joaquim, acabei de falar com ele lá na esquina. Você o viu também?” “Fred, por que você não me deixa levá-lo a um médico?” “Por quê?” “Acompanhe-me, só isso. O doutor Kant é ótimo e poderá ajudá-lo com os seus conhecidos. Faça isso por mim, pelo amor que já alimentamos juntos.” Fred sentiu-se tocado por Martinha, afinal, qual era o mal em acompanhá-la na visita a um médico amigo que queria ajudá-lo? Ainda que ele não carecesse de nada, a não ser do dinheiro que a corretagem lhe negava, o fato de estar com Martinha já era em si agradável demais para justificar a ida ao médico. Fred já conhecia as antigas preocupações de Martinha com sua saúde, motivo do rompimento amargo entre os dois, no ano anterior. “Beleza! Qual é o dia do médico?” “Sexta-feira pela manhã, você pode?” “Dou um jeito, falo lá com o pessoal da corretora e aviso à mãe.”

 Sexta-feira, 8 horas em ponto, Martinha tocou a campainha da casa. Ele gritou lá de dentro: “Já vou!” A mãe, de soslaio, estranhou o gesto de Fred, mas nada disse. Saiu ele meio desengonçado com uma pastinha embaixo do braço e ajeitando a carteira no bolso de trás da calça jeans, muito surrada, velho presente de Martinha que nem notara o fato. Martinha, na porta de entrada para o quintal da casa, foi logo perguntando: “E sua mãe Rosane, onde está?” “Você sabe, ela é muito tímida e ficou no quarto lendo seus romances. Ela agora está empolgada com O Quinze e chegou a comentar ontem comigo que a miséria continua a mesma lá para as bandas do Nordeste.” Desceram juntos à rua, Fred cumprimentou o velho Joaquim que bebia um café pingado na esquina e pegaram o ônibus que os conduziria até a clínica onde Martinha trabalhava e havia deixado agendada a consulta. Entraram. “Avise ao doutor Kant que eu estou aguardando com o Fred.” A recepcionista entendeu e saiu para transmitir o recado. Logo voltou dizendo: “Em cinco minutos podem entrar”. Fred, aproveitando a espera inevitável, queria lembrar o passado, as velhas promessas de amor não realizadas, mas Martinha se esquivava em manter qualquer prosa mais alongada com ele e dizia monossílabos: “É...” “Sei...” “Hum...” Mais de cinco minutos se passaram quando a recepcionista informou: “Podem entrar, o doutor Kant os aguarda”. Os dois se levantaram e chegaram à sala confortável, bem diferente das salas do posto de saúde municipal onde ele já estivera com sua mãe Rosane. “Oi Martinha! Trouxe o nosso amigo...”, disse o doutor, logo se levantando da cadeira e apertando a mão dos dois. Fred não gostou da intimidade – “nosso amigo?” – mas relevou tudo pelo amor à Martinha. Sentaram-se. O médico ajustou os óculos. O clima era visivelmente constrangedor, mas Fred não percebia. “E aí?”, perguntou Fred, meio sem saber o que estava fazendo ali. “Fred... Você tem um problema, mas podemos, juntos, controlá-lo. É preciso que você queira e...” Martinha interrompeu o médico e disse, mais afoita: “Fred, nós já conversamos sobre isso antes, quando rompemos a nossa relação, lembra-se? Você sabe que é esquizofrênico e precisa se cuidar. Não existe nenhuma mãe Rosane, meu querido, nenhum velho Joaquim. Você entende isso?” A fisionomia de Fred modificou-se. Sorumbático e irritadiço, começou a bater os pés, alternada, mas, suavemente. O médico acrescentou: “Tudo isso, quer dizer, esses fantasmas são produzidos pela sua mente, mas, ao aceitar se tratar, você receberá medicamento apropriado e isso gradativamente vai desaparecer. Esses fantasmas vão parar de te perturbar, compreende?” “E quem vai fazer a minha comida depois que chego da corretora? Quem vai colocar manteiga no meu pão pela manhã, porque vocês odeiam minha mãe e um velho inofensivo? Eles não são fantasmas que me perturbam. É a minha mãe, meu amigo, meu trabalho. Acho que vocês é que não entendem nada.” Martinha e o doutor se entreolharam, sem saber o que dizer. “Pense com calma nisso tudo e volte na próxima semana para conversarmos um pouco mais sobre isso, tudo bem?”, disse o médico. “Tá bom”, disse Fred, nervoso. Martinha, decepcionada, levantou-se e acompanhou Fred até sua casa. Em frente ao portão, os dois combinaram. “Sexta-feira que vem eu passo aqui, no mesmo horário, para irmos lá no médico, certo?” Fred olhou fundo nos olhos de Martinha, contemplou sua beleza escultural, lembrou as noitadas ardentes e disse: “Tudo bem, Martinha. Se isso é importante para você, eu vou naquele doido”. “Ele não é doido, é um excelente psiquiatra, um pesquisador do assunto.” Fred olhou debochado, mas acatou. Entrou em casa e falou com mãe Rosane. “O almoço está pronto?” “Ainda não. Espere um pouco. Vai ler o jornal e tome o seu remédio.”

 A semana passou rápida e dentro da implacável rotina de Fred: casa-trabalho-casa. Quando Martinha se posicionava para apertar a campainha do “esconderijo” – como Fred costumava chamar sua casa – ele já espreitava pelo basculante ao lado da porta da sala que dava para o quintal e o portãozinho da frente. A campainha soou e Fred saiu desembestado pela porta da frente e disparou três tiros certeiros e fulminantes que explodiram na jovem donzela. Martinha tombou numa poça de sangue, olhos abertos, chocados, sem tempo para reações. Ele se aproximou do corpo caído e o examinou sem piedade. Virou as costas e entrou melancólico. “Mãe, eu matei Martinha.” Sentou no sofá e começou a chorar convulsivamente. A velha, vendo a cena, tranqüilizou-o: “Meu filho, ela nunca existiu!”

Ao longe, o som da sirene da polícia ecoava na sala."


 Escrito por:
 MARCIO SALES SARAIVA
 Sociólogo 

Membro do:
Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC)
Associação de Profissionais de Sociologia do Estado do Rio de Janeiro (APSERJ)
Sindicato dos Sociólogos do Rio de Janeiro (Sindserj)
Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP)

 Publicado originalmente no FACEBOOK.





Um comentário:

  1. Este texto eu copiei do Facebook do meu amigo Márcio... Achei um texto muito interessante sobre esquizofrenia e que lembra o filme "Uma mente brilhante", que conta a história do matemático John Nash... É importante nos preocuparmos em cuidar da nossa saúde mental...

    Só isto!

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